quinta-feira, 9 de março de 2017

"Melodia do Mal": a assustadora face da inocência

"Melodia do Mal", de John Ajvide Lindqvist, é mais que um simples livro de terror, é uma reflexão sobre a natureza humana. Esqueça todas as suas referências porque a obra vai te surpreender. Não gosto de enquadrar livros em gêneros, terror psicológico ou thriller, por exemplo, acho que isso reduz sua profundidade. E como Lindqvist é profundo! Desprenda-se, portanto, dos estereótipos.
A história começa com um conflito. Em meio a um bosque, um músico de meia idade encontra um bebê, uma menina muito pequena, envolvida num plástico, semienterrada. Pouco tempo antes, no caminho para a mata, onde pretendia pegar cogumelos, um carro passou zunindo por ele numa estrada de nenhum movimento: teria ela sido abandonada para morrer? Na dúvida, o homem decide levar a criança para casa, onde o espera a esposa, outrora cantora. A mulher protesta, acha absurda a ideia, sustenta que o melhor seria entregar o bebê às autoridades, mas acata a decisão do marido e aceita criá-lo em segredo. Conseguem manter a criança no antigo quarto do filho adulto, problemático e distante, sem chamar a atenção de ninguém. A menina loura é estranhamente silenciosa, com seus enormes olhos azuis, mas revela um talento precoce para a música que encanta ainda mais o músico.
À medida que a menina cresce, torna-se difícil manter segredo. O filho descobre a "irmã adotiva", até então chamada de Pequenina, e se conecta com ela de um jeito singular. Passa a chamá-la de Theres. Acontecimentos estranhos vão se somando enquanto o casal se sente cada vez mais pressionado pelo impulso natural da menina. Para obrigá-la a permanecer cativa, o "pai" a aterroriza dizendo que fora da casa há adultos maus que comem crianças pequenas como ela. O único lugar que a manteria a salvo era o lar, de onde jamais poderia sair.
A "mãe" não compactua com a postura do marido, mas é apenas uma dona-de-casa, passiva e resignada. Apesar de ser cúmplice dele, ela tenta preparar a menina para a vida normal, tentando alfabetizá-la. Vez ou outra alerta para distúrbios que identifica no cotidiano sem estímulos da criança, mas o marido, que se sente dono de um anjo cantor, desconsidera suas observações e faz de tudo para guardar a menina para si.
Logo Theres já não é uma garotinha, mas uma pré-adolescente, e as coisas se tornam insustentáveis. O talento para a música é apenas uma das muitas excentricidades da garota, que conquista cada vez mais o "irmão" e se projeta para o futuro de uma forma assombrosamente catalizadora até o final surpreendente das quase quinhentas páginas.
Claro que há cenas de absoluto horror, detalhes que podem chocar o leitor pela brutalidade, mas "Melodia do Mal" é como um caleidoscópio. Sob o pano de fundo do terror, trata principalmente da passagem da criança para o mundo adulto. O que é certo, o que é errado? Quem dita as regras? Desnuda a vulnerabilidade dos jovens diante das redes sociais e como lidam com a solidão, o medo, a vergonha e a ausência dos pais, mas também fala de bullying, violência doméstica, transtornos mentais, pedofilia e, principalmente, do anseio de todo ser humano por amor e aceitação.
Para mim, um livro profundo, dramático e comovente.
No Brasil, foi lançado pelo selo Tordesilhas, que já publicou, do mesmo autor, "A Maldição de Domarö" e "Mortos entre Vivos" (que eu já li e será tema de outra resenha). Lindqvist é sueco, dramaturgo e roteirista, muito conhecido pelo livro "Deixa Ela Entrar", sobre vampirismo, que também aborda o bullying, e virou filme.

terça-feira, 7 de março de 2017

Navegar é preciso

Manter-se um homem bom tem seu preço e o preço costuma ser alto.
Um homem bom se esforça continuamente para se adequar ao que ele imagina que os outros esperam dele: um exemplo bem-sucedido de força e coragem. E no meio desse embate entre a imperfeição do ser humano e a exigência do ser social, o próprio self, o eu verdadeiro, pode se perder.
Quando resolvi ler "No Mar", do jornalista holandês Toine Heijmans, publicado pela Cosac Naify, um livro fino, de apenas 157 páginas, meu único desejo era me distrair com uma aventura em alto-mar. A sinopse me cativou: um pai, Donald, leva a filha, Maria, de sete anos para uma viagem curta a bordo de seu veleiro Ishmael, último trecho de sua viagem sabática de três meses em alto-mar. Mas, inexplicavelmente, a menina desaparece no segundo dia, quando começa o martírio do pai.
O livro tem tudo. A aventura que eu desejava, o suspense, o drama. Heijmans escreve sua primeira (e premiada) obra com o brilho da simplicidade e mantém a agilidade de jornalista. Quando vi já estava na metade. Mas "No Mar" tem outra coisa, mais preciosa: é um relato profundo e sensível do homem moderno. Há muitos livros que retratam o drama da mulher - suas escolhas, a dupla jornada, a maternidade, a opressão da cultura machista... - mas poucos se ocupam do universo masculino, com suas dores e anseios.
Donald deseja ser um bom pai, um bom marido, querido e aceito pelos colegas de trabalho, reconhecido pela chefia, mas deseja ir além e espera que o mar lhe proporcione isso. Navegar é a prova máxima de coragem e ele se agarra à tranquilidade das rotinas preestabelecidas (atualizar a previsão do tempo, olhar a carta náutica, conferir todos os itens de segurança) como um Dom Quixote desesperado diante do desconhecido. Acima de tudo, Donald não pode dormir, precisa se manter atento para permanecer vivo, zelando pela filha, e receber seu galardão ao final da epopeia. Assim, navega.
Contudo, a presença da filha desestabiliza a segurança dos pequenos rituais, foge ao controle. A imagem da esposa, Hagar, ansiosa, à espera no porto, o torna vulnerável e fraco diante dos acontecimentos. Como o mar, o feminino o oprime e exige demais. Esse mar, tão vasto e intenso, tão livre e absoluto, é também aterrorizante. E ele precisará encarar a si mesmo em sua verdadeira face.
A bordo de seu Ismael (não por acaso homenagem ao único sobrevivente no clássico Moby Dick), Donald naufraga na vida em busca de si mesmo como um herói, mas o mar lhe impõe outros rumos.
Uma leitura fascinante.

(PS.:  Muito legal a diagramação dos capítulos, como ondas, e o prefácio assinado por Cristovão Tezza, uma grata surpresa)

segunda-feira, 6 de março de 2017

Quando Stephan King se perdeu

"A Dança da Morte", de Stephen King, pela Suma de Letras, me foi uma completa decepção.
Como King escreve bem, não desisti no meio do livro (e-book). Confesso que sou resistente: são 1.248 páginas na versão impressa.
Depois de uma doença mortal que começa numa unidade do governo e foge ao controle das autoridades, que tentam abafar o caso, a população é praticamente dizimada. Muitos detalhes, repetitivos, sobre quem morre e os poucos que sobrevivem.
A história, que até então seria um misto de suspense e ficção científica, descamba para a fantasia, com conteúdo apocalíptico e religioso, e se perde em intermináveis enredos. Acompanhamos os sobreviventes, que ganham o poder de ter visões reais por meio de sonhos, divididos entre o bem (personificado numa idosa) e o mal (simbolizado por um enigmático viajante). Não há terror, nem suspense, apenas um enredo que não convence.
Enfim, um livro enrolado, sem objetividade e com um final decepcionante.
Se cortasse pela metade, ainda assim, sobrariam supérfluos.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Diário de um Ano Ruim

Descobri Coetzee com atraso, por uma indicação feita pela jornalista e escritora Sônia Hirsch em entrevista ao programa Provocações. Sônia é uma estudiosa sobre alimentação, tenho vários livros dela na estante, e de uma simpatia incrível. Vivo de indicações, sinais, citações, tudo que possa me guiar até um bom escritor, por isso a agradeço. E assim, caminhando sobre a obra deste senhor, cheguei a "Diário de um Ano Ruim", publicado pela Companhia das Letras. Um livro bem diferente, que mexeu com meu poder de concentração como nenhum outro.
Imagine um livro tridimensional, três narrativas que seguem ao mesmo tempo. Temos a história de um famoso escritor, idoso, que se encanta e contrata uma garota casada, Anya, que mora em seu prédio, para digitar seus artigos para um livro polêmico. O marido da moça, que vive num universo completamente diferente do mundo fechado do escritor, tenta levar vantagem nessa relação e coloca a esposa numa situação difícil, em que ela se confrontará com seus próprios limites éticos. Forma-se uma espécie de triângulo amoroso sem ser, um triângulo escaleno, na minha opinião. Personagens ligados, pensamentos revelados, verdades combatidas, e no decorrer das páginas vamos conhecendo melhor a biografia do escritor, sul-africano (como Coetzee) e radicado na Austrália, o marido australiano que cresceu num orfanato e a própria Anya, de origem filipina, compondo assim nosso próprio desenho da trama.
Cada capítulo abre com o título de um artigo e logo abaixo, em notas de rodapé, acompanhamos a evolução de reflexões e sentimentos do escritor e da digitadora, que sente a opressão e a libertação do convívio com os dois homens, questionando-se sobre sua identidade, seus desejos, suas opiniões acerca do que eles próprios defendem.
Gostei muito porque o senti o livro como um chamado sobre a mulher e, sobretudo, sua libertação. Não espere adrenalina, paixão, tragédia, fortes emoções, portanto é uma leitura tranquila, embora inquieta. Trata do ser humano enquanto sociedade e, curiosamente, como o animal que é, um animal sofisticado, racional, porém ainda movido por instintos primitivos.
Comecei a ler outro livro de Coetzee, "Elizabeth Costello", que espero seja tão interessante quanto, também publicado pela Companhia das Letras.
Vale lembrar que J. M. Coetzee recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2003.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

O Imperador de todos os males

Pode-se pensar no câncer como um monstro invencível, humanizá-lo na condição de um inimigo a ser vencido e tratá-lo como o pior dos pesadelos, um sinistro espectro que nos sonda como uma harpia, escolhendo suas vítimas do alto. No passado era tão temido que nem se podia pronunciar seu nome - lembro da minha avó se referindo a "àquela doença" ao falar da causa morte de alguém - como se o simples substantivo comum fosse impregnado do poder mágico de atrair tão nefasta má sorte. A Medicina avançou muito nos últimos cem anos, mas o câncer (sinônimo de morte, e morte lenta e sofrida) continua sendo visto como uma entidade única, poderosa e temida, não como o que é: o crescimento descontrolado de células.
Quando a Companhia das Letras lançou "O Imperador de Todos os Males - uma biografia do Câncer" (em 2012), concebido por um médico indiano cuja difícil pronúncia complica sua memorização, Siddhartha Mukherjee (e preciso ler e reler várias vezes para me certificar se escrevi certo), logo me interessei em comprar. A princípio, pode-se pensar que não é uma literatura para muitos - suas 648 páginas impõem respeito - mas o texto flui levemente, mesclando história da Medicina, casos clínicos, o drama das equipes de saúde diante do fracasso de tratamentos, os bastidores dos maiores trabalhos na área, conquistas e curiosidades. Dos primórdios, no Antigo Egito, até os dias atuais, o autor expõe detalhes interessantíssimos de como a comunidade científica busca sua cura e como vem sendo frustrante para os médicos conviver com os limites da ciência diante deste enorme desafio. 
Num daqueles casos singulares, Mukherjee é médico-pesquisador com muito talento na escrita de modo a tornar o que seria uma leitura maçante e restrita a especialistas uma obra fácil de ler e de entender. Admiro a capacidade literária de alguns médicos, como o nosso Drauzio Varella, que conseguem traduzir temas complexos e herméticos, mas tão fundamentais de serem compreendidos por pessoas comuns, pacientes ou não, com a necessária simplicidade. É um médico jovem, porém experiente, nascido em Nova Delhi em 1970, formado em Harvard, especialista em Oncologia, tendo conhecimentos em Biologia e Imunologia.
O livro me prendeu por uma semana, talvez porque gosto de ler sobre medicina. Recomendo àqueles que desejam saber mais sobre a trajetória do câncer até a atualidade. Entretanto, concluí a obra com uma ligeira frustração, já que o nome me fez imaginar algo maior, mais completo e até futurista, à altura do Mito. Claro que meu desejo era ler que estamos muito perto da cura, tão perto como de uma maçã no galho acima de nossas cabeças, porém ainda se caminha em descompasso com a crescente demanda, acompanhando suas poucas pistas. Expectativas altas demais, portanto. Mesmo assim, é um livro especial.
Seu novo livro, "O Gene", também pela Companhia das Letras, está na minha lista de desejos. Trata de outro tema, a hereditariedade, mas se for tão interessante quanto o "Imperador" valerá cada segundo.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Jo Nesbo, que decepção

Não tirei agosto para falar do meu desgosto com as últimas leituras, não! Mas o pior livro do mês foi "Sangue na Neve", de Jo Nesbo, editora Record.
Talvez por ser fã do escritor norueguês com cara de astro de rock (ele tem mesmo uma banda), minha expectativa era bem alta e fiquei desconcertada com a história tão pouco envolvente do assassino de aluguel Olav. Confesso, o livro estava em promoção e era bem compacto, dava para ler junto com outros - acabo tendo uma pilha ao lado do abajur, daí o nome do blog. Mas, acima de tudo, era um Jo Nesbo!
Escrito em primeira pessoa, "Sangue na Neve" envolve o monólogo do bom e cruel Olav, que por um lado se coloca capaz de coisas heroicas e por outro, das mais sórdidas. Só que o personagem, que seria profundamente humano em suas contradições existenciais, é tão superficial que não convence ninguém de nada. Aliás, senti raiva dele por vários momentos, até mesmo nos que Nesbo tenta trabalhar com o passado triste que evocaria lágrimas do leitor, ou ao menos sua compaixão. Comigo não colou.
Pela sinopse, Olav é contratado para matar a esposa adúltera de um traficante de drogas, mas cai de quatro por ela, que nada tem a ver com outra moça, bem menos glamourosa, que o protagonista acaba salvando da prostituição. Entre honrar sua palavra e manter a pele, acompanhamos um Olav fraco e insosso, que se envolve em algumas brigas para caminhar, abatido, para o final comum.
O livro difere dos que eu li não só em peso como em envolvimento. Nos outros, Nesbo se apresentou com um incrível talento para prender a leitura, cruzando informações com maestria. Neste, Nesbo pareceu escrever sob encomenda ou teimar em criar algo muito diferente de seu estilo afiado, mas o molho desandou, passou do ponto. (E pensar que o livro, que na propaganda lidera lista de best sellers, já tem direitos vendidos para virar filme...)
Quem sabe eu quisesse reviver o sabor do investigador Harry Hole em "Boneco de Neve", que tanto me prendeu do começo ao fim. Olav está a anos-luz de Hole, perdido em suas indefinições. Possível querer a empolgação de "A Estrela do Diabo", tão profundo, ou "O Redentor", com suas minúcias. Só sei que foi triste descobrir que até Jo Nesbo derrapa de vez em quando.

"Caixa de Pássaros": melhor fechada

"Caixa de Pássaros", romance de estreia de Josh Malerman, foi vendido como um thriller amedrontador, daqueles de deixar os fãs de terror insones por muitas noites. Por isso comprei. Mas, em que pese a excelente diagramação e o texto fluído, com capítulos curtos, tão fáceis de ler, o livro não me conquistou.
Meu interesse também partiu de a heroína ser mulher e mãe (quantas são, por favor, mulheres bravas que decidem fugir com as crias a tiracolo num cenário cheio de perigos em romances de terror?). Claro que, como mãe, me identifiquei com a proposta, que no final das contas me decepcionou bastante.
Para começar, a história nada tem de nova: num mundo pós-apocalíptico, alguns poucos tentam sobreviver a tragédias provocadas por enigmáticas criaturas vendando os olhos, já que quem as vê enlouquece e comete suicídio.
Neste ambiente vazio e hostil temos a presença da protagonista Malorie que, grávida, é acolhida por um grupo cuja harmonia se desestabiliza com a presença de um novo integrante. Anos depois, a moça e os filhos, um casal de crianças treinadas para viver no escuro, buscam fugir do mal numa canoa para algum tipo de paraíso.
Depois de um ritmo lento, em tempos alternados, quase corremos loucamente nas últimas páginas num esforço sobre-humano do autor em tornar a narrativa mais interessante para novamente desacelerar no final tão previsível.
Além de cenas inverossímeis (mesmo em fantasia, a falta de lógica desrespeita a inteligência do leitor), o enredo parece truncado, batido, sem graça. Nem nos momentos mais altos da leitura consegui sentir frio na barriga; o que tive foram bons bocejos.
Não acho que seja um livro desprezível, mas digo que esteja na triste média daquelas obras escritas para vender. Sem paixão, sem surpresas. Uma pena. Aos amantes do medo, um conselho: nem abram essa caixa.
Como disse, boa mesma só a diagramação (da "Ô de Casa").
"Caixa de Pássaros" foi lançado no Brasil em 2015 pela editora Intrínseca.